sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Outras vozes - 5

Bill Soares foi o primeiro baixista do Papa Poluição, e o que mais tempo permaneceu no grupo. Com ele gravamos nossos compactos e fizemos a tour da banda pelo Nordeste (ainda falarei dessa aventura).

Artista plástico, autor do desenho que ilustra a capa do primeiro disco do Papa, Bill permanece morando e trabalhando em São Paulo.

No próximo post, ele fala da experiência que foi a sua estréia no estúdio para gravar o primeiro disco do Papa Poluição.

A seguir, com você, Bill Soares.

Tiago Araripe

Papa Poluição antes e depois, por Paulo Costa

Conheci Tiago no começo dos anos setenta em São Paulo, apresentado pelo Penna. Cabelos compridos como os meus, fazia umas harmonias estranhas, umas melodias (lindas) mais ainda e letras que me intranqüilizaram também pela força com que as cantava com uma voz ainda mais surpreendente. E tome-lhe Cine cassino, Três monges, Sodoma e Gomorra, Teu coração bate, o meu apanha, Drácula e que tais. Daí em diante, eu, ele mais o Penna seguimos tocando juntos até desembocarmos "naquele filho de mãe careca e pai cabeludo", como bem definiu André Luís de Oliveira, que foi o grupo Papa Poluição.

Papamos, por alguns anos, tudo que aparecia pela frente: sons, ritmos, notícias, palpites, fuxicos etc., digerindo tudo pra depois misturar os detritos. Uma vez reciclados, eram retransformados em música (com uma originalidade de marcianos), pra depois serem consumidas nos teatros, rádios, tvs e até ruas da metrópole. À noite, juntos com os outros Papas Beto, Bill e Chico, assustavámos os paulistanos à bordo de Sofia Bundette, a fantástica Kombi bege que nos tranportava saltitante pelas ruas da cidade pra colar cartazes, transportar aparelhos de som, idas e vindas de ensaios, pequenas viagens etc.

Depois, já em carreira solo, Tiago gravou Cabelos de Sansão, eu e o Penna Macaco avoa, música-tema do longa de Hermano Penna, Sargento Getúlio. Seguimos em dupla (Penna & Paulinho) até que a vontade de respirar ares mais puros me levou de volta pra Salvador, enquanto Tiago ia pra Fortaleza e Penna continuava na paulicéia, sempre em grandes movimentações culturais e políticas. Fiquei lá na Bahia muitos anos entre jingles, mar, carnavais, cerveja, rede, sombra e água de coco. Em meio a tudo isso gravei e toquei com o Penna uma trilha prum novo filme do Hermano, Mário. Reencontrei o Tiago umas tantas vezes pra conversar e gravar uns reclames.

Mas como nós baianos dizemos, "o mundo é Oropa, França e Bahia", acabei mudando (por obra e muita graça da Luciana, minha mulher) pra França, onde não há carnaval e não preciso falar com quase ninguem. Meio sem compromisso, fui fazendo umas apresentações aqui e acolá, até que tive a feliz idéia de escrever pro Tiago sugerindo uma possível parceria internética. Agora sigo meu caminho por aqui cantando canções que faço via e-mail com Antonio Miranda, Fred Vieira, Penna e Tiago Araripe, ele segue por lá. Cabelos de Sansão vai estar logo nas ruas; Salvador, meu disco de estréia na França, também. Bom estar de volta aos palcos, gravações, ensaios etc.

Acabei de fazer mais uma música com letra do Tiago, Idéias, que acho ficou bem legal! Já já mando em mp3 por e-mail, como modernos que somos…

Grande abraço, Araripe.

Paulinho Costa

Foto: Paulo Costa e quarteto, in concert.

Outras vozes - 4

Paulo Costa foi não apenas cantor, guitarrista e composer do Papa Poluição. Foi também o responsável pela arquitetura sonora do grupo, realizando arranjos inspirados e criativos.

Atualmente morando em Toulouse, França, desenvolve uma nova fase que tem na bossa nova o principal ponto de partida.

Tem sido meu parceiro constante de novas composições como Bem me queria, que integra o repertório dos seus shows.

De Toulouse, Paulinho escreveu especialmente para este Blog sobre o Papa Poluição, seu novo trabalho musical e nossas parcerias recentes.

A seguir, com você, Paulo Costa.


Tiago Araripe

Enquanto isso, no forno da Saravá Discos...


Na imagem, reprodução de página do site oficial de Zeca Baleiro.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O Palácio de Pilatos como palco

O Nuvem 33 fez um punhado de apresentações além da Retreta Eletrônica no Teatro do Parque: no Pátio de São Pedro, no Beco do Barato e na Feira Experimental de Música (ao lado, o cartaz criado por Lula Wanderley), em Nova Jerusalém.

Quanto a esta, o Diário de Pernambuco, em sua edição de 13 de novembro de 1972, não deixou por menos e estampou a nota:

"Hippies" invadem a Nova Jerusalém e realizam festival

FAZENDA NOVA (Do enviado especial) - As ruelas e palácios de Nova Jerusalém foram invadidos, sábado ao entardecer, por "hippies" e estudantes que, entre os sons de guitarras e a estridência "desordenada" de baterias, realizaram o primeiro festival de música de vanguarda de Pernambuco, com a denominação de I Feira Experimental de Música.

O espetáculo, que começou às 17h30m do sábado terminando às 4 horas do domingo, reuniu cerca de duas mil pessoas.

A Banda de Música de Fazenda Nova e a Banda de Pífanos de Nova Jerusalém abriram a parada musical em meio a um entusiasmo sem precedentes dos jovens aglomerados ante o imponente Palácio de Pilatos. Seguiu-se a apresentação do conjunto Tamarineira Village, culminando com a exibição do Nuvem 33 e Flaviola.

Os promotores do certame distribuíram questionários a fim de colher as impressões dos participantes do espetáculo, qualificado pelos observadores como "o primeiro grande passo para a completa renovação da música popular regional".

As composições do Nuvem 33 refletiam nossas influências juvenis à época (eu tinha apenas 21 anos): Frank Zappa e os Mothers of Invention, Jimi Hendrix, filmes B de terror e livros de ficcção científica (você já leu O homem demolido, de Alfred Bester, ou Inalterado por mãos humanas, de Robert Scheckley? São muito criativos).

Hoje, canções como Moma, seu banjo e o Dr. Bizarro; Motcha, o morcego; Ave marciana; Lesmas famintas e outras não fariam feio em um CD para crianças...

Tiago Araripe

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Nuvem 33 no céu de Recife

Sem compromisso com a linearidade, rumamos da Vila Madalena, São Paulo (ver posts anteriores), para a Avenida Conde da Boa Vista, Recife. É lá que, em 1971 – na calçada – conheço Lula Wanderley. Ambos temos os cabelos longos – algo raro na Recife daquela época – e isso facilita a aproximação. Lula me fala do diretor de teatro maranhense Tácito Borralho, que veio à cidade montar uma peça chamada Armação e está à procura de certo estudante de Arquitetura autor de composições estranhas: quer convidá-lo para fazer a trilha musical.

A pessoa em questão, descubro em seguida, sou eu mesmo. E assim, meio casualmente, começo a fazer música para um circuito um pouco maior que os amigos e colegas de faculdade. Em uma semana, componho 12 canções para a peça. E monto uma banda para interpretá-las ao vivo no Teatro do Parque, durantes as cenas. Isso muda o curso da minha vida e determina o surgimento de um grupo muito atuante no cenário musical de Recife em 1972: o Nuvem 33.

A capital pernambucana vivia, no que dizia respeito à música, um momento de transição. Enquanto nomes como Alceu Valença e Geraldo Azevedo tinham ido tentar a sorte no Centro-Sul, a cidade repercutia a seu modo o Tropicalismo. Havia um certo clima experimentalista no ar, traduzido por nomes como Aristides Guimarães e o Laboratório de Sons Estranhos, Marco Polo e o Tamarineira Village, Ana Lúcia Leão, Flaviola, entre outros. Era um período bem estimulante.

O nome Nuvem 33 foi tirado do título de uma novela de ficção científica que escrevi na época. O grupo não era limitado à música, pois incluía artistas plásticos e atores em suas performances. Na primeira delas – Retreta Eletrônica, no Teatro do Parque – desenhistas faziam comentários ao vivo, em linguagem de histórias em quadrinhos, do que se passava no palco. O resultado era projetado em um telão. Por exemplo, enquanto eu fazia voz de falsete durante uma canção, o marinheiro Popeye dizia nos quadrinhos que minha voz era igual à de Olívia Palito. Coisas assim.

O Nuvem 33 reunia personagens como Otávio “Bzzz” Machado (que inventou uma espécie de teremim e me apresentou ao som de Frank Zappa), o guitarrista Carneirinho, o baixista João de Deus, o baterista Israel (que depois trabalharia com Alceu Valença), e as participações dos artistas plásticos Lula Wanderley, Humberto Avellar (que me apresentou autores de ficção científica como Isaac Asimov, Ray Bradbury e Kurt Vonnegut Jr.) e Rodolfo Mesquita. Claro, havia muito mais gente. O primeiro show, aberto a todos os músicos da cidade, não tinha hora para terminar. Nele o guitarrista Robertinho do Recife, recém-chegado dos Estados Unidos, fez uma participação especial. Nele quebrei minha régua "T" em cena e renunciei à Faculdade de Arquitetura. A partir daí decidi ir a São Paulo estudar música com Tom Zé.

Tiago Araripe

Na imagem, cartaz criado por Lula Wanderley para um dos shows do Nuvem 33 em Recife. Há muitos anos morando no Rio de Janeiro, Lula é também psiquiatra, tendo trabalhado com Nise da Silveira e colaborado com o cineasta Leon Hirszman no documentário Imagens do Inconsciente. Como artista plástico, manteve sólida parceria com Lygia Clark, de cuja obra foi curador.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Papa Poluição, por José Luiz Penna

Nada disso será passado,
tudo é sempre paixão.
Revê-lo em breve para,
nem que seja,
voltarmos ao velho gamão.
A canção é conexão com os astros
e a minha orientação.
Na travessia do mundo, evoe!
Escola líri-carnavalesca
de navegação. Papa Poluição.

J. L. Penna

Foto: De pé, Tiago Araripe, Bill Soares, José Luiz Penna,
Paulo Costa; agachados, Xico Carlos e Beto Carrera.

Outras vozes - 3

No próximo post, você verá um texto em forma de poema escrito por José Luiz Penna especialmente para este Blog.

Um dos mentores do Papa Poluição, Penna é autor da única música do repertório do grupo que virou sucesso no rádio: Comentário a respeito de John. Feita em parceria com Belchior e gravada por este, a canção sempre foi uma constante nos shows da banda.

Presidente do Centro Cultural da Vila Madalena, presidente nacional do Partido Verde, Penna tem a visão sempre além da linha do horizonte. É o parceiro com quem mais compus, seja fazendo letra ou música - ou as duas coisas juntas a quatro mãos. Como aquele velho rock do Papa:

Sou mais um cão que ladra
Enquanto a caravana passa
Tudo dando bode
E eu tangendo as minhas cabras...

A seguir, com você, José Luiz Penna.

Tiago Araripe

Na foto (de Patricia Penna), Zé Luiz e eu durante reencontro em Fortaleza.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Vila Madalena 2

O Papa Poluição (foto) é uma espécie de precursor da Feira da Vila Madalena, que já tem 30 edições anuais. Um dia, no período de São João, colocamos nossos aparelhos e instrumentos na calçada e tocamos para a vizinhança. Era o projeto Rua de Lazer. Juntou gente. Entre as pessoas presentes, um argentino na época casado com a Alzira Espíndola. Foi ele o empresário que viria a realizar a primeira edição da famosa Feira.

Depois o próprio Penna, como presidente do
Centro Cultural da Vila Madalena, iria contribuir decisivamente para manter ativo o evento em cujos palcos já passaram o Papa Poluição – e mais músicos do que o somatório de todas as bandas cover dos Beatles do Brasil inteiro. Além disso fui jurado, ao lado de Paulo Miklos dos Titãs e outros, do Festival de Música da Vila que deu o primeiro prêmio a Itamar Assumpção pela composição Nego Dito. Em algum lugar do futuro, o Lira Paulistana lançaria o primeiro disco do selo: o LP Beleléu, do Itamar.)

A Vila reunia os mais diversos tipos urbanos. Um deles era assíduo freqüentador das páginas de polícia dos jornais, um sujeito intimidador que atendia pela alcunha de Lanchão. Certa madrugada, caminhando pelas ruas do bairro, me deparo na mesma calçada com o dito cujo. De cara ele implicou com meu cabelo comprido e já queria me encher de porrada no ato. Diante da minha nítida desvantagem física na possibilidade de um corpo-a-corpo, argumentei que era morador da Vila e músico. Desconfiado, ele me perguntou se eu conhecia o Gereba e o Capenga – integrantes do grupo baiano Bendengó. Claro que sim, respondi. São meus amigos, moram na rua Fidalga. Foi como pronunciar alguma senha secreta. Surpreendentemente, Lanchão me pediu desculpas e me deixou passar. Fui salvo pelo gongo. E ele nunca mais me importunou.

Tiago Araripe

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Vila Madalena 1

Recém-chegado a São Paulo, aluguei um sobradinho de fundos na Vila Madalena. Era mínimo: sala e cozinha embaixo, quarto e banheiro em cima. Naqueles anos que tiveram início em 1973, a Vila parecia uma cidade do interior. As pessoas se cumprimentavam nas calçadas, e era possível comprar fiado na mercearia – o que em determinados momentos salvava a pátria.

As ruas tinham nomes entre estranhos e poéticos: o sobradinho ficava na rua Wizard, próximo à esquina com a rua Harmonia e quase diante da rua Laboriosa. Havia também Faisão, Fidalga, Original e tantas outras. Ainda existem, claro. Depois eu moraria também em um pequeno prédio sem elevador, na esquina da Girassol com a Purpurina – aliás num período em que minha vida não era nem um pouco florida e muito menos festiva.

Voltando ao sobradinho da Wizard, durante muito tempo o nascimento da minha primeira filha – Joana – ficaria anunciado no muro da esquina: notícia em forma de grafite.

Algum tempo depois, José Luiz Penna mudou-se com a mulher Rosa para a rua Girassol, a apenas um quarteirão da minha casa. Lá mantivemos a tradição de ensaiar no quarto do casal que vinha desde quando ele habitava a rua Patápio Silva, em um bairro vizinho. (Quando a Vila Madalena começou a ganhar projeção como reduto de artistas, fomos apontados entre os pioneiros dessa espécie de colonização cultural.)

Os ensaios do Papa Poluição (foto) eram diários, com uma disciplina ferrenha. E envolviam uma operação logística que aos poucos aprendemos a realizar com desenvoltura: colocar a cama em posição vertical, afastar o guarda-roupa, transportar as caixas e aparelhos de som da área da lavanderia para o quarto, plugar tudo, afinar os instrumentos e trabalhar duro. Ainda bem que contávamos com a paciência e a compreensão de Rosa.

Outro momento marcante foi uma festa que o Papa Poluição organizou no sobradinho da Wizard, por ocasião do meu aniversário. Aliás, organizou talvez não seja bem a palavra. Cheguei em casa de madrugada, e a turma já estava instalada. Muita gente para pouco espaço. A maioria, músicos. Lembro das presenças do Belchior, com quem o Papa Poluição fez uma temporada bem movimentada no circuito musical do Sesc, e da surpreendente chegada de Paulo Moura – que eu só conhecia de nome e de cujo trabalho sempre fui admirador. Fizemos um animado som com os utensílios da casa, que se prolongou até o dia clarear. E durante muito tempo, na pequena cozinha da rua Wizard, eu e a mãe das minhas filhas tivemos que conviver com panelas amassadas...



Tiago Araripe

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Pizza não é cultura

Uma das últimas incursões do Papa Poluição em São Paulo foi mais que um show: foi uma espécie de movimento cultural para salvar o Teatro 13 de Maio. Afinal aquele era um dos principais espaços de música na cidade. Foi lá que assisti shows como o de lançamento do Moto Perpétuo, grupo que praticamente lançou Guilherme Arantes, e da banda de rock Joelho de Porco, integrada por Tico Terpins (anos depois, no estúdio Áudio Patrulha do Tico e do Zé Rodrix, eu gravaria Cabelos de Sansão).

Pois bem. O Teatro 13 de Maio estava prestes a se tornar uma pizzaria, e precisávamos fazer algo. Conseguimos algumas datas na pauta do teatro ameaçado. E então começamos a mobilizar músicos e poetas para tentar impedir o fechamento daquele espaço. Acorreram artistas como Jorge Mautner e Eliete Negreiros, que se alternaram ao Papa Poluição nas apresentações musicais. Poetas organizaram uma exposição de livros no saguão do teatro. Disponibilizamos diversos tubos de spay para o público pichar as paredes da casa (uma das frases anônimas que resultou disso tudo é a que dá título a este post).

Conseguimos aumentar a sobrevida do Teatro 13 de Maio por alguns meses, ao que me lembro. Hoje, pelo que vi na internet, no local está instalado um café. A Dalvinha, irmã do Paulo Costa, me lembrou esses dias que foi o Papa Poluição que fez o show de fechamento do Teatro. O nome do show: Venha passar o Natal com o Papa.

Num país de tantas CPIs que acabam em pizza, mas tão rico de manifestações artísticas e culturais, ficou aquele toque marcado em spray na memória: "Pizza não é cultura".


Tiago Araripe


Montagem fotográfica (da esquerda para a direita): Em cima, Beto Carrera, Bill Soares, José Luiz Penna; embaixo, Paulo Costa, Tiago Araripe, Xico Carlos.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Pausa para breve insight



Receita tropical


Ao descascar
Seus abacaxis
Não esqueça de colocar
Todos os pingos nos iis.

x

Tiago Araripe



terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Mais um mergulho no fundo do baú

Não se trata de saudosismo. Mas já que Cabelos de Sansão está sendo relançado, traz no seu vácuo essa pré-história da qual faz parte o compacto simples acima. Os cabelos, que já se foram, afloram agora como se sob a ação de algum tônico capilar miraculoso.

Mera virtualidade.

E aí está meu segundo disco, lançado pela Odeon também em 1974. O escritório da gravadora era pequeno mas arrumado, localizado na área da Boca do Lixo, em São Paulo. Aliás, algumas gravadoras ficavam localizadas ali.

No casting da Odeon havia nomes como Egberto Gismonti e Leny Andrade, com quem eu me deparava de vez em quando (a Leny chegou a me pedir uma composição).

Do disco participam, entre outros nomes arregimentados pela gravadora, músicos que viriam a formar comigo, no ano seguinte, o grupo Papa Poluição: José Luiz Penna, Paulo Costa e Xico Carlos. A faixa Sodoma e Gomorra, canção de toques surrealistas que chegou a tocar em rádios do interior de São Paulo e fez algum sucesso no Crato onde nasci, tem a participação de integrantes da Traditional Jazz Band.

A foto da capa é do cineasta cearense (também do Crato) Hermano Penna. Os arranjos são do maestro José Briamonte, arranjador do antológico disco Estudando o Samba de Tom Zé, lançado dois anos depois, onde na faixa Índice são também parceiros.

E vamos chegando à tona, que respirar é preciso.

Tiago Araripe

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Teu coração bate, o meu apanha

Letra: Décio Pignatari (foto)
Música: Tiago Araripe

Compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe (Continental, 1974)


Teu coração bate
Você é rica
O meu apanha que sou pobre
Teu amor devora o meu
Não deixa nada
Nem um suspiro, nem um A
Nem um respiro, nem um M
Nem um retiro, nem um O
Nem um tiro, nem um R

Teu coração bate
De vampiro
Você é rica
De amor sugado
O meu apanha
Sem manha
Porque é pobre
De amor roubado

Teu amor devora o meu
Não deixa nada
Nem um escape nem ar
Nem mesmo amor para eu te amar

Só sofre assim que não morreu
E não encontra quem o mate
Teu coração no meu
Bate, bate, bate, bate.




sábado, 16 de fevereiro de 2008

Das ruínas a rexistência, por Carlos Adriano

Entre 1961 e 1962, o poeta e pensador Décio Pignatari (1927) filmou em 16mm alguns projetos sob ânimo ideológico e revolucionário (mas sem experimentação formal). A produção era da Estrela Vermelha Productions, fundada por Décio com seu amigo José Nania. A câmera de corda era operada por Nania e Décio, que também assinava o roteiro e a direção dos filmes.

Entre os projetos rodados, estavam o ambicioso documentário Ruínas para o Futuro (sobre a greve dos vidreiros em 1910 e a utopia operária levantada com a cooperativa anarquista em Osasco), a ficção Ponto de Encontro (uma história de amor passada entre os trilhos dos trens que ligavam Osasco a São Paulo) e o lançamento da pedra fundamental da Matriz de Osasco.

Estes filmes nunca foram finalizados ou exibidos. Permaneceram inacabados, desconhecidos. Das Ruínas a Rexistência (2004-2007; 35mm; 13 minutos) é a montagem poética desta rara constelação de imagens enigmáticas do cinema brasileiro. Com sua habitual sacada de síntese, Décio definiu-o como “um filme cubista-caleidoscópico”.

Assino a realização e a montagem, e divido a produção e o roteiro com Bernardo Vorobow. Eduardo Santos Mendes fez o design e a edição de som. José Luiz Sasso mixou e masterizou. A première mundial deu-se em agosto de 2007 no 60º Festival de Locarno (que, em 2003, exibiu minha obra completa na seção Cineastas do Presente).

No trabalho de reapropriação, as imagens filmadas por Décio foram transformadas por meio de procedimentos ópticos e operações (“efeitos”) digitais: exploração de texturas, re-enquadramento de planos, inversão de movimento, rotação do quadro. É um filme do gênero “experimental”, na vertente found footage, que recicla material de arquivo.

Curiosamente, no que hoje vejo como uma projeção retro-perspectiva, Décio batizou um artigo sobre meu trabalho, publicado à época em que eu havia realizado meus dois primeiros filmes sobre material de arquivo (Remanescências e A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha) justamente com o título “Carlos Adriano: he’s reel !”.

Como todas as imagens provêm de arquivo, era natural e coerente que todos os sons também o fossem. É o que ocorre com dois trechos breves de músicas incidentais de Livio Tragtenberg e Wilson Sukorski (de cujo arquivo veio a gravação da voz de Décio lendo seus poemas), e o som do big bang refeito em laboratório por John G. Cramer.

A única música que propriamente toca no filme (e inteira, nos créditos finais) é Teu Coração Bate, O Meu Apanha, composta por Tiago Araripe sobre a letra de Décio Pignatari. A gravação foi lançada no lado B de um compacto de 1974 (no lado A, Conto de Fraldas de Tom Zé, que faz coro na canção de Décio e Tiago). Sob o mesmo espírito de re-descoberta, que re-instaura uma revelação, eu a escolhi por sua raridade.

E pelo achado maravilhoso. Mas também pela gazua de ouro do que se abre à fruição da experiência. Encerrar um filme de teor sensorial e conceitual sobre a natureza temporal da imagem com uma canção reflexiva e desconcertante (por sua clareza e enigma, sua construção mediada e seu apelo imediato), que faz do jogo amoroso profissão de fé e des/encanto, é um gesto que adiciona outras e plurais camadas de sentido e de ironia.

A canção é extraordinária. A letra deslumbrante joga com achados polissêmicos e paranomasias (o mais evidente é a conjugação do verbo "bater"). A música é proeza de articulação intrincada, em dois tempos (eco em dobro do sentido duplo das palavras). Ritmo da milonga de pós trovador, refinado e popular, do melódico ao atonal. Em pura alquimia do deleite, esgarçada pela dor do amor e retorcida por passos requebrados, a mente sensível dança no construído descompasso de um tango sincopado.

Orgulho-me de ter realizado este filme e ter merecido a confiança de artistas tão raros como Décio Pignatari e Tiago Araripe.

Carlos Adriano

(Imagem: montagem de Carlos Adriano com foto de Décio e sombra duchampiana.)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Outras vozes - 2

O próximo convidado deste Blog é o cineasta paulistano Carlos Adriano. Já falamos dele há alguns posts. É autor do curta Das ruínas a rexistência (fotograma acima), que tem como tema os filmes inacabados de Décio Pignatari e inclui o tango que fiz a partir de uma letra do Décio: Teu coração bate, o meu apanha.

Amanhã publicarei texto de Carlos Adriano feito exclusivamente para este espaço, onde ele fala do seu filme, dos filmes de Décio e dessa composição em especial.

Em breve, com você, Carlos Adriano.

Tiago Araripe

Coração automático

A breve discografia do Papa Poluição vai um pouco além. Uma faixa além, para ser mais exato: a composição Coração automático (Penna-Tiago), inserida no compacto Carnaval 78 lançado naquele ano pela RGE. O disco, com seis faixas, extrapola o formato de compacto - que geralmente chegava no máximo a quatro músicas.

Classificada com marcha, Coração automático me parece mais um frevo-canção. A despeito do contexto carnavalesco e do caráter sazonal/descartável do lançamento, a composição é interessante e divertida.

Aqui um trecho da letra:

Teu coração automático / à prova d´água e de choque / faz click quando te vê / Acende a luz da pane / dispara: toc toc / Se dana a correr...

Na gravação, o Papa Poluição tal e qual nas apresentações ao vivo, sem convidados especiais. Conversando há pouco com o Bill Soares no msn, este lembrou de ter tocado o baixo no disco.

Por falar em shows, a discografia do Papa é pouco expressiva diante da ativa trajetória do grupo nos palcos de São Paulo e Nordeste. Todo ano montávamos um espetáculo novo, com composições próprias. A experiência de José Luiz Penna no teatro (ele foi ator, participou da primeira - ou segunda? - montagem do musical Hair) contribuiu muito com o desenvolvimento das performances da banda. As apresentações eram movimentadas, e não raro descíamos do palco para entrevistar/provocar pessoas na platéia.

Uma hora dessas falarei mais a respeito de shows como Mamãe Rádio não toca meu disco e Projeto Blue Cap´s, possivelmente com fotos e textos de releases para ilustrar. É certo que se fossem reunidas, as composições dariam bem mais que um álbum duplo. É certo que algumas histórias do grupo poderão causar boas risadas.

Tiago Araripe

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

À procura de um hit - B

O segundo disco do Papa Poluição contou com o apoio especial de Fausto Aguiar (irmão da cantora Nalva Aguiar) nas guitarras e arranjos. A formação do Papa Poluição na época: Beto Carrera (guitarra), Bill Soares (baixo), José Luiz Penna (vocais, guitarra e percussão), Paulo Costa (vocais, guitarra e percussão), Tiago Araripe (vocais e percussão) e Xico Carlos (bateria e percussão).

A composição do lado B tem como base uma manchete do jornal Notícias Populares: "Seduzida num disco-voador".

Que algum ex-participante do Papa possa também dar seu depoimento, para ilustrar melhor essa história toda.

Tiago Araripe

À procura de um hit - A

Este é o segundo disco do Papa Poluição, lançado em 1977 pela Top Tape. Um compacto simples gravado como se devia, em 16 canais, com acompanhamento de produção do Michael Sullivan. Sullivan (nome artístico do pernambucado Ivanilton) e o parceiro Paulo Massadas, para quem não sabe, são autores de grandes hits cantados por ninguém menos que artistas como Roberto Carlos, Tim Maia, Xuxa, Angélica, Gal Costa etc. etc. etc. Eu diria que são como uma espécie de Rei Midas da música: o que tocam vira sucesso. Não foi, decididamente, o que aconteceu com o disquinho do Papa. E não vou entrar aqui no mérito (ou desmérito?) da mídia na época, com seus esquemas e jabaculês.

Tua ausência, a canção do lado A, é uma referência direta aos Beatles. Cita inclusive, no arranjo, diversas composições do quarteto de Liverpool.

Tiago Araripe

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Papa Poluição, por Tom Zé, Guilherme Arantes, Augusto de Campos, Décio Pignatari...

Este é o verso da capa do compacto duplo do Papa Poluição, aquele já comentado posts atrás. Algumas pessoas da cena cultural, convidadas a dar um breve depoimento a respeito do grupo, responderam com boa vontade e - em alguns casos - bom humor. É o caso dos poetas Augusto de Campos e Décio Pignatari, do cineasta André Luís Oliveira (diretor do cult Metereorango Kid, Herói Intergalático), dos compositores Tom Zé, Marcus Vinícius de Andrade e Guilherme Arantes, da cantora roqueira Tibet...

As quatro faixas foram gravadas num estúdio de quatro canais, localizado nas imediações da chamada Boca do Lixo de São Paulo. A qualidade deixa a desejar, mas dá uma idéia do som do Papa.

Na época o diretor artístico da Chantecler era o Salatiel Coelho, que fez a coordenação de produção do disco. Um paraibano criativo e engraçado, de quem ouvimos boas histórias. Como a da dupla sertaneja que se apresentou na gravadora, em busca de oportunidade. Chamavam-se Conselheiro e Ouvidor. Com um detalhe: ambos eram carecas. Salatiel Coelho ouviu as músicas da dupla e, curioso, perguntou a razão do nome. O primeiro se adiantou: falou que era Conselheiro porque, durante os shows, ficava dando conselhos às menininhas. "E o Ouvidor?", perguntou Salatiel. "Porque fica só ouvindo...", respondeu de pronto o Conselheiro. A dupla foi contratada, mas com a condição de ser rebatizada. E foi assim que viraram Kung Fu e Kojak...

Tiago Araripe

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Do primeiro disco a gente não esquece

São Paulo, 1974. Estúdio de Rogério Duprat, maestro do Tropicalismo, no boêmio bairro do Bixiga. Apenas dois canais. Arranjo de Guilherme Arantes, bem antes do sucesso de Meu mundo e nada mais que impulsionou sua carreira. No lado A do compacto simples acima, como se viu no post anterior, Conto de Fraldas de Tom Zé.

Teu coração bate, o meu apanha é um tango. Eu nunca havia feito tangos antes, até receber de Tom Zé as letras de Décio Pignatari. O outro poema/letra em parceria com Décio é Drácula, que interpretei no Festival Abertura da Globo no ano seguinte (ouça aqui).

São composições dramáticas como todo tango - e divertidas também.

A gravação original de Teu Coração Bate, o Meu Apanha foi utilizada no curta-metragem experimental Das Ruínas a Rexistência (2004-2007). O filme, dirigido pelo cineasta paulistano Carlos Adriano, é uma "montagem poética sobre fragmentos dos desconhecidos filmes inacabados (1961-1962) de Décio Pignatari". O curta teve sua estréia internacional na Suíça, durante o 60º Festival Internacional de Cinema de Locarno, numa seção não-competitiva dedicada às experimentações mais radicais do audiovisual contemporâneo. Foi exibido também em outubro de 2007, no 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica Sesc Videobrasil, que fez uma exposição completa da obra de Carlos Adriano.

Tiago Araripe

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Tom Zé, por Tiago Araripe


Em dezembro de 2003, Tom Zé veio a Fortaleza apresentar o show Imprensa Cantada e lançar o livro Tropicalista Lenta Luta. Na ocasião, o jornalista Luciano Almeida Filho me pediu para escrever um texto sobre o período em que trabalhei com o compositor e músico baiano. Tirei do fundo do baú a foto ao lado, que ilustra o artigo (de um ensaio que fizemos no apartamento de Tom Zé em Perdizes).
O depoimento me proporcionou um reencontro musical com Tom Zé no palco do anfiteatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. A convite dele, juntei-me à banda e ao show para dividir os vocais da antológica Jimi Renda-se.


RECORDAÇÕES DO FUTURO


Tiago Araripe
Especial para O POVO


"Quando saí de Recife para tentar a sorte como cantor e compositor em São Paulo, deixando pela metade o curso de Arquitetura e um emprego de copy-desk no Diário de Pernambuco, só tinha um objetivo cem por cento definido: estudar na escola de música de Tom Zé. A fixação tinha seus motivos. Tom Zé era, como 30 anos depois continua sendo para muitos, uma referência de inventividade musical. Suas entrevistas que acompanhei pela televisão me indicavam um criativo invulgar, sempre capaz de lançar um olhar novo sobre os mais diversos assuntos da vida e da cultura do país.


Cheguei a São Paulo no início de 1973, trazendo na bagagem algumas composições tão estranhas quanto imaturas, feitas no eixo Crato-Recife por onde eu me movimentava. Não por acaso, o primeiro show a que assisti na grande metrópole foi o de Tom Zé e Grupo Capote, no auditório do Masp. Depois um vizinho pianista me forneceu o telefone do cantor e marcamos o primeiro encontro. De antemão soube que a escola de música já não existia. Mas fui em frente. Na longa conversa que tivemos no estúdio do maestro tropicalista Rogério Duprat, no bairro do Bixiga, entremeada pela apresentação ao violão de meu precário repertório, Tom Zé se mostrou um ouvinte atento e respeitoso. O contato, que durou toda uma tarde, teve desdobramento inesperado: trabalhamos juntos durante um ano, fazendo apresentações nas quais eu tinha espaço para mostrar algumas de minhas músicas.


A princípio, reunimos um time de músicos amadores, universitários de uma forma ou de outra atraídos pelo trabalho do baiano de Irará. (Alguns deles se profissionalizaram e chegaram a dar boas contribuições ao que se configuraria mais tarde como a Vanguarda Paulistana.) Ensaiávamos no apartamento de Tom Zé nas Perdizes, provavelmente no mesmo edifício onde mora até hoje e do qual é jardineiro oficial. Na mesma vizinhança habitavam os articuladores do movimento concretista: Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Cheguei a participar de alguns encontros de Tom Zé com esses poetas de campos e espaços. Muitos deles no bar Cristal, regados a chopp e Steinhager. Não raro surgiam intersecções musicais interessantes, como a audição da obra do músico austríaco Anton Webern, promovida e comentada por Augusto de Campos, no apartamento deste, com a presença de Tom Zé e do poeta Régis Bonvicino. Ou as cinco letras que Décio pediu a Tom Zé para musicar e este me repassou: um desafio, pois eram extensas e sugeriam tudo menos versos de canção popular. Mesmo assim, a partir delas consegui fazer duas composições: Teu coração bate, o meu apanha, lado B do compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe, lançado pela Continental em 1974, e Drácula, que interpretei no Festival Abertura da Globo no ano seguinte. Ambas são tangos, gênero no qual até então eu não me aventurara, definidos pela crítica especializada da época como uma vertente nova, não enquadrada nem no tango tradicional nem no tango jazzístico de Piazzola. Aprovado pelo novo parceiro, ganhei depois uma letra específica (e curiosíssima) das mãos do próprio Décio, transformada numa espécie de rumba: Hipopopótamo (sic).


Voltando ao fio da meada. Nos ensaios com os universitários, trabalhando a partir da sonoridade acústica de violões, era interessante observar a capacidade de Tom Zé de extrair o melhor dos músicos incipientes que éramos. Valia-se dos seus conhecimentos de música erudita (chegou a estudar cello e ter aulas com Smetak, quando morava em Salvador) e sua intuição de artista inquieto, sempre em busca do inusitado, para nos ensinar. Lembro de um arranjo que ele criou para ser executado por mim numa harmônica de boca, mostrando-me como tocar sem me atrapalhar com o manejo da clave. Assim a gaita incorporou-se aos shows, que fazíamos em diversos espaços da capital e do interior paulistano. E olha que nunca fui tocador de gaita.


Em determinada altura do campeonato, sugeri a ele que deveríamos modernizar o show, dando-lhe uma característica pop. Algo que fizesse jus ao disco Todos os olhos (sim, aquele da foto polêmica), recém-lançado. Ele aceitou de pronto, e convidei alguns amigos, nordestinos e músicos, constituindo assim o que viria a ser o embrião do grupo Papa Poluição, que integrei entre 1975 e 1980.


A derradeira apresentação que fizemos juntos foi num evento sobre cultura baiana no Anhembi, do qual participou também Walter Smetak. No seu show, Tom Zé entrava todo paramentado de artista pop, com uma máscara aplicada sobre o rosto que o deixava transfigurado. Aos poucos ele ia tirando o disfarce, arrancando nariz, orelhas etc. Se queria impacto, conseguiu.


O registro do trabalho que fizemos juntos foi o compacto gravado no mesmo estúdio, de apenas dois canais, onde nos conhecemos: de um lado Conto de fraldas, de Tom Zé, e do outro Teu coração bate, o meu apanha. Queríamos uma sonoridade diferente para o disco, e convidamos um músico na época bem cotado nos estúdios, mas completamente desconhecido do grande público: Guilherme Arantes. Foi quem fez os arranjos, pilotou os sintetizadores e participou do coro.

Tom Zé tinha uma maneira peculiar de viver a cidade de São Paulo. Acompanhá-lo dirigindo no trânsito caótico era muito interessante. Ele sabia de todos os fluxos e contrafluxos, de todos os meandros do tráfego, como um pescador conhece as oscilações das marés. O que não quer dizer que sua convivência com a cidade fosse tranqüila. Não o era em absoluto. Que o digam algumas de suas músicas, como Botaram tanto lixo, botaram tanta fumaça.


Fazia anos que não o via e nos encontramos na pré-estréia do filme The Doors, à qual ele foi por insistência da esposa Neusa. Tinha voltado há pouco de Nova York onde tivera o primeiro contato pessoal com David Byrne. Assistimos ao filme juntos e perguntei-lhe como estava a cena musical novaiorquina. Ingenuamente, imaginava que me contaria novidades quentíssimas. No entanto, ele me respondeu que não sabia: ficara o tempo todo dentro do hotel.


Esse é o Tom Zé que conheci. Um ser híbrido, meio Irará meio futurismo universal. Durante o longo período em que ficamos sem nos ver, tive um sonho premonitório que contei a Neusa numa fila de cinema. Nele, Tom Zé obtinha finalmente amplo reconhecimento. Isso foi antes de o mundo lhe abrir as portas, a partir do convite de David Byrne. Que bom que se tornou real."
(Publicado no jornal O Povo, em 5 de dezembro de 2003)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Cine Cassino, por Luiz Carlos Salatiel

"Quando me vi diante do LP Cabelos de Sansão, do Tiago, tudo cheirava a novo e ousado. Anos 80. Era um pouco da gente do Crato irradiando de São Paulo pro mundo marcado na inesquecível canção Cine Cassino, que poetizava uma experiência comum a todos os adolescentes daqui das cidades interioranas: o escuro do cinema como grande aliado das nossas inocentes (nem tanto!) proezas libidinosas. Genial! Ainda mais, a homenagem ao nosso querido Cine Cassino com a voz do Tiago e o piano ´tresloucado´ do Arrigo Barnabé me fascinaram. Então, vinte anos depois, quando montava o elenco de canções que fariam parte desse meu Contemporâneo, naturalmente Cine Cassino foi das primeiras que me vieram à cabeça. Ao mesmo tempo homenagearia Tiago (a quem admiro muito), o Cine Cassino (que resiste e não se transformou ainda em Igreja Evangélica) e o cinema (uma paixão permanente). Acertei!"

Luiz Carlos Salatiel


Observações deste Blog:

Na Cine Cassino de Cabelos de Sansão, bem que o piano poderia ter sido do Arrigo Barnabé. Éramos vizinhos da Vila Madalena e tínhamos boa proximidade. Entretanto, Arrigo não participou do disco. Pedi a Felipe Avila, guitarrista de sólida formação musical e integrante da banda Sexo dos Anjos, que fizesse o arranjo da canção - tarefa que ele cumpriu magistralmente reunindo os timbres de violão de aço (que ele mesmo tocou), piano e cello. O piano ficou a cargo do jovem músico alemão Felix Wagner, radicado em São Paulo. Com apenas 21 anos na época, Felix já era multiinstrumentista e professor de música. O cello foi executado por Renato Lemos, e o Wilson Souto Jr. - produtor da bolacha - tocou bells. A reunião desses e de tantos outros talentos foi fundamental para a qualidade alcançada em Cabelos de Sansão. (Tiago Araripe)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Outras vozes

Este Blog abre espaço também para opiniões de pessoas que, de alguma forma, estão relacionadas ao disco Cabelos de Sansão ou aos seus antecedentes. O primeiro a se manifestar é o cantor e compositor cearense Luiz Carlos Salatiel. No seu CD Contemporâneo, lançado em 2004, o artista faz uma releitura muito pessoal da canção Cine Cassino (uma das faixas de Cabelos...).

Salatiel tem incursões também no cinema, teatro, rádio, atuando como produtor cultural ativo e polivalente.

No próximo post, com vocês, Luiz Carlos Salatiel.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Canção Sideral

Durante determinado período chamei de Canção Sideral o projeto que teve início com o disco Cabelos de Sansão. Além da faixa título, canções como Coração Cometa, Fios da Light, Estrela-do-Mar e a versão de Augusto de Campos para Little wing (de Jimi Hendrix) apontavam para a minha crescente necessidade de olhar para o alto, além das nuvens e dos aviões. O processo prosseguiu em outras composições, inéditas ainda em disco, e continua até hoje. Mas agora sem rótulo que restrinja ou aprisione.

Quando imaginei o cenário para a capa de Cabelos de Sansão, a primeira imagem que me veio à cabeça foi o espaço sideral. Conversando com o astrônomo Augusto Damineli, vizinho da Vila Madalena, este me apresentou uma série de fotos tiradas de um observatório onde trabalhava. Escolhi a imagem da Nebulosa de Trífida, que curiosamente tem o formato da cara de um leão. Hoje possivelmente eu achasse over a convivência do leão propriamente dito com o leão sugerido pela formação da nebulosa. Mas na época vi como um bom sinal – e um achado. Augusto conseguiu o negativo da foto, que media 30 x 30 cm - maior que a capa do LP. Não consegui encontrar um laboratório com equipamento para processar a imagem. Fui novamente salvo pelo solícito vizinho, que revelou o negativo no observatório em São Paulo.

Na reprodução reduzida da capa do CD, a percepção da imagem da nebulosa quase vai literalmente para o espaço. Mas, com boa vontade, ainda se pode perceber a face da fera. Graças à primorosa direção de arte da designer Andrea Pedro, que integra a equipe de colaboradores da Saravá Discos, a embalagem gráfica do CD acrescenta muito ao projeto visual do velho vinil. Adianto aqui uma foto que ela reproduz no novo encarte.
Tudo isso me fez lembrar uma composição que fiz mais de 30 anos antes
da viagem espacial do primeiro astronauta brasileiro, o Major Aviador Marcos Pontes. Se tivesse sido gravada, ele poderia tê-la escutado enquanto flutuava em sua cabine.

Três semanas
No espaço
E dela nem ao menos
Um bilhete ligeiro

Três semanas
Um pedaço
Na vida do primeiro
Astronauta brasileiro.

Tiago Araripe

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Independente x Alternativo

Quando Cabelos de Sansão foi lançado em 1982, escrevi um texto para acompanhar o release que o Lira Paulistana preparou para a imprensa. Propunha o reexame do termo independente, tão em voga naquela época. O livro História da Música Independente, de Gil Nuno Vaz, reproduziu o seguinte trecho:

"Independente é um termo incorreto, equivocado, uma atitude de quem quer suprimir o real, reinventando o mundo e imaginando-se viver numa dimensão à parte, alheio e imune ao sistema. Alternativo, termo que eu prefiro, é antes de tudo o zelo pelo lugar que ocupamos, repropondo sem ilusões o novo espaço. Alternativo não por estar à margem das grandes gravadoras, como o termo independente sugere, mas estendendo essa ação à estética, à ética e à ideologia dos projetos. Ao invés de reinventar o mundo, reutilizá-lo. Reaproveitar todos os materiais, seguindo o exemplo da própria natureza, que tudo transforma. Revalorizando uma dimensão do trabalho esquecida pela sociedade capitalista, onde a gente necessita estar continuamente despertando da inconsciência que ela insiste em fabricar".


Tiago Araripe

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Papa Poluição, discografia minimalista

Esta é a capa do primeiro disco do Papa Poluição, feita a partir de desenho do então baixista pernambucano Bill Soares. (Bill continua morando em São Paulo, onde mantém estúdio de produção audiovisual e trabalho como artista plástico.)

Da esquerda para a direita, na parte de cima: Bill Soares, Tiago Araripe, Paulinho da Costa. Na parte de baixo: Xico Carlos, José Luiz Penna e Beto Carrera.

O produtor da bolacha é o Carvalho, autor de uma música conhecidíssima, gravada por diversos artistas (inclusive Tim Maia): Canário do Reino. O acordeonista Oswaldinho teve participação especial na faixa Rola coco.

A gravadora, Chantecler, era especializada em música sertaneja. Lá conheci um compositor singular, que assina "n" canções do gênero: João Pacífico. Claro, ele já estava velhinho. Foi o primeiro brasileiro, ao que me consta, a se aposentar como compositor pelo INSS. Sua primeira música gravada antecede o primeiro samba gravado (Pelo telefone, de Sinhô). Não lembro o nome da composição sertaneja. João Pacífico é o autor de Fio de cabelo, apenas para dar um exemplo de um dos seus inúmeros sucessos. Descanse em paz, João.

Foi na porta da Chantecler que tive uma visão inesquecível: Lupicínio Rodrigues descendo de um táxi e andando, com passos arrastados a indicar o peso da idade e a debilidade da saúde, em direção à entrada da gravadora. Lupicínio deixou canções surpreendentes, como Torre de Babel. Na composição, de melodia espiralada e ascendente, ele compara um relacionamento amoroso à construção da torre bíblica. Descanse em paz, Lupicínio.

Tiago Araripe