Tiago Araripe e Zeca Baleiro, em cena do lançamento de Cabelos de Sansão em Fortaleza (22/9/2008).
(Foto: Genilson Lima)
Um dia, no final dos anos 80, o cantor e compositor Zeca Baleiro estava espiando as novidades de uma loja de discos no Rio de Janeiro, quando levou um susto: um velho LP, com um cabeludo nu cavalgando um leão na capa, revelava uma sonoridade inovadora, a fusão de ritmos nordestinos com as experimentações do movimento que ficou conhecido como Lira Paulistana, que tinha nomes como Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, Premeditando o Breque e Tetê Espíndola. O tal cabeludo era um cearense chamado Tiago Araripe. Foi amor à primeira vista. Ou melhor: à primeira audição.
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De lá para cá, Zeca não descansou enquanto não encontrou Araripe pessoalmente. Aproveitando a oportunidade de um show em Fortaleza, pediu à produção que localizasse Tiago. O homem que apareceu à sua frente era um respeitável senhor de óculos, muito diferente do cabeludo pelado da capa do disco. Mas a voz doce e suave, que um dia Augusto de Campos comparou ao timbre dos trovadores provençais, continuava a mesma. E o talento de compositor também. Zeca Baleiro e Tiago Araripe tornaram-se parceiros, e tempos depois o músico maranhense resolveu relançar Cabelos de Sansão, o disco que tanto o tinha impressionado.
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“É um disco importantíssimo, embora pouco conhecido”, declarou Zeca em entrevista ao jornal O Povo, de Fortaleza, e que chega às lojas em 2008 pelo selo Saravá Discos, criado por Baleiro para resgatar trabalhos pouco divulgados e que normalmente não se enquadram nos projetos comerciais das grandes gravadoras.
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O relançamento coincide com a série de homenagens aos 50 anos do movimento de poesia concreta e a um de seus expoentes, o poeta e ensaísta Décio Pignatari, um dos parceiros de Tiago, juntamente com os outros líderes do movimento, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. O disco faz desfilar personalidades como Itamar Assunção, Tetê Espíndola, Vânia Bastos, Oswaldinho do Acordeon e o lendário Tony Ozanah (dos Beat Boys, banda que acompanhou Caetano Veloso em Alegria, Alegria no Festival da Record).
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Augusto de Campos, aliás, criou uma versão da música Little Wing, de Jimi Hendrix, especialmente para o disco. A capa é do famoso designer Alexandre Wollner e, fiel ao conteúdo experimental e vanguardista do disco, traz uma foto do cosmos captada em telescópio, contribuição do físico Augusto Damineli.
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No arranjo das músicas o produtor Wilson Souto Jr., idealizador do Lira Paulistana, fez tudo o que pôde para que as idéias vanguardistas do disco fossem executadas à risca. Foram mais de 300 horas de estúdio, que reúnem formações inusitadas como um quarteto de cordas acompanhado por tabla indiana, instrumentos andinos com sanfona nordestina e toda a parafernália do rock eletrônico. Além de uma “participação” dos Beatles, numa colagem sonora de Strawberry Fields Forever.
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UM GAROTO QUE AMAVA OS BEATLES E AS BANDAS CABAÇAIS
Irmãos Aniceto (foto: Pachelly Jamacaru)
Apesar das influências pop que o permeiam, Cabelos de Sansão não esconde a origem nordestina de Tiago. Por trás de todo o experimentalismo com que ousou desafiar o som predominantemente conformista dos anos 80 e de ainda trazer ecos do Tropicalismo, o disco revela um pouco da influência da sonoridade de tradições populares da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, dos reisados e do maneiro-pau.
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Para quem sabe da história, em determinados momentos é possível até mesmo visualizar o menino Tiago na cidade cearense do Crato, onde nasceu, de gravador em punho, registrando o som dos pífanos, triângulos e zabumbas desses grupos a pedido do avô folclorista, que muito o influenciou. Ao mesmo tempo, seu outro avô mantinha, em sua fazenda no sertão do Piauí, um baú cheio de tesouros: discos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Marinês. O menino Tiago, tímido e curioso, vivia por ali, bebendo daqueles sons.
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Até que um dia, repentinamente, embriagou-se. Um vizinho do Crato, cujo pai tinha uma loja de discos, apareceu com um disco chamado Beatlemania. “Aquilo abriu para mim um novo horizonte de possibilidades musicais” - revela Tiago, que trocou o velho gravador de pilhas do avô por um violão e começou a compor suas próprias canções.
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Mais tarde, já como estudante de arquitetura no Recife, deparou-se com o Tropicalismo e com o som de outros vanguardistas como Frank Zappa e Mothers of Invention e Jimi Hendrix. E misturou tudo com os livros de ficção científica de autores como Kurt Vonnegut Jr. e Isaac Asimov. Isso, segundo ele, o levou a ser conhecido na cidade como um autor de “músicas estranhas” e a formar um grupo chamado “Nuvem 33”, no qual figuravam, além dos músicos, também artistas plásticos e atores.
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Um grupo tão performático estreou, como não poderia deixar de ser, numa peça de teatro. Armação, encenada no palco do Teatro do Parque do Recife, alternava o teatro com a música exótica do Nuvem 33. Embalado, Tiago Araripe compôs as doze músicas do espetáculo em uma semana. E logo depois voltou ao mesmo teatro com o grupo para o espetáculo de estréia da banda, já batizada. Poderia ser um show de música como outro qualquer, mas Tiago e seus amigos, inquietos, fizeram questão de incluir performances como a de um cartunista desenhando ao vivo “comentários” sobre o que ocorria no espetáculo, sendo as imagens projetadas num telão no fundo do palco.
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CRUZANDO A IPIRANGA COM A AVENIDA SÃO JOÃO
Àquela altura a cidade do Recife já era pequena demais para os projetos de Tiago Araripe. Ele ouvira falar de uma certa escola de música dirigida pelo baiano Tom Zé, em São Paulo, e resolveu arribar. Chegou atrasado. Tom Zé já tinha fechado a escola, mas resolveu apostar no jovem cearense de cabelos longos. “Ele tem a capacidade de descobrir o que cada pessoa tem de melhor e de revelar isso”, lembra Tiago que, num dos shows de Tom Zé, surpreendia a si mesmo fazendo um solo de gaita mesmo sem muita intimidade com o instrumento.
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Por intermédio de Tom Zé, Tiago conheceu Pignatari e os irmãos Campos. E foi apresentado à efervescente vanguarda paulistana dos anos 70 e 80. Com Pignatari, compôs Teu Coração Bate, o Meu Apanha (gravada no compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe, de 1974), e Drácula, poema convertido num tango futurista pelas mãos do músico cearense e apresentado no Festival Abertura da Rede Globo, de 75. Drácula também virou um videoclipe gravado nos porões do Teatro Municipal de São Paulo e estrelado por Tiago em rede nacional no Fantástico. De Augusto de Campos, ganhou “de presente” a versão de Little Wing que enfeita Cabelos de Sansão.
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No filme Sargento Getúlio, vencedor do Festival de Gramado em 1983, a voz de Tiago Araripe flutua sobre um desempenho inesquecível de Lima Duarte, na trilha sonora criada pelo grupo Papa Poluição, fundado por Tiago e outros músicos nordestinos em 1975. Aliás, o “Papa” ainda tem seus fãs fidelíssimos, que mantêm uma comunidade no Orkut. O grupo, que misturava rock com ritmos nordestinos, gravou pequenos discos, fez shows nos mais diversos espaços de São Paulo e excursionou pelo Nordeste.
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O CD Cabelos de Sansão, o mais novo relançamento Saravá Discos, é o resultado do trabalho de Tiago Araripe pós-Papa Poluição, quando ele iniciou uma fase solo e mais experimental. É um disco histórico porque é o segundo lançado pelo selo Lira Paulistana, logo depois de Beleléu, de Itamar Assunção. Que a música de Tiago Araripe possa enfim ser ouvida pelo público que merece ter.
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Wilson Bentos
Jornalista e publicitário
(O texto acima foi gentilmente escrito para o material de divulgação de Cabelos de Sansão.)