O jornalista José Teles escreveu, para as edições de 14, 15 e 16 de agosto do Jornal do Commercio (Recife), extensa reportagem sobre os 40 anos do festival de Woodstock. No terceiro dia da matéria, é destacada a repercussão do evento na cena musical do Recife.
Entrevistado, lembrei do quanto me impressionou a versão idealizada do festival que nos chegou por meio do documentário exibido no Cine São Luís. Uma das consequências locais mais diretas foi a realização do nosso próprio woodstock possível: a I (e única) Feira Experimental de Música, em Nova Jerusalém, região Agreste de Pernambuco, tendo como palco o palácio de Pôncio Pilatos.
Segue o texto publicado no domingo. (T.A.)
» MEMÓRIA
Ecos de Woodstock chegam ao Recife
Publicado em 16.08.2009
Última reportagem sobre Woodstock mostra como o festival foi compartilhado pelos recifenses no documentário de Michael Wadleigh e influenciou uma geração
José Teles
teles@jc.com.br
A influência do festival de Woodstock sobre a juventude brasileira, sobretudo os jovens que viviam nas grandes cidades foi avassaladora. Em 1969, o País acabara de ingressar no período mais pesado da ditadura e para a juventude só havia duas opções, o desbunde ou o engajamento. Era cair na estrada, ou cair na clandestinidade. A turma do desbunde se viu refletida no Woodstock visto no documentário de Michael Wadleigh, que chegou às telas brasileiras em 1970 (é até paradoxal que tenha sido liberado pela censura, com tantas cenas de nu e drogas). “A gente era o genérico do hippie no Brasil. Foi um momento feliz, um universo de paz, era o ideal, num tempo em que a gente vivia a realidade dos anos de chumbo. A gente já vinha ouvindo aquela música, bebendo daquela fonte. Para nós era como prenúncio da mudança de tudo”, analisa o músico Lula Cortês.
Se Woodstock encantou a juventude, para os músicos foi uma influência marcante. Adolescente na época, mas já considerado o melhor guitarrista da cidade, Robertinho do Recife, que tocava nos Bambinos, há anos morando no Rio, lembra, em conversa por telefone, que viu o documentário várias vezes: “Para mim foi um aula de tudo que a gente estava vivendo. Ver aqueles músicos todos no mesmo lugar. Jimi Hendrix tocando o hino americano, que não havia ainda gravado foi fantástico. O filme fez as pessoas modificarem a maneira de vestir. Começaram a surgir festivais hippies em algumas praias de Pernambuco, lembro de um em que toquei, num lugar chamado, acho, Águas Finas. A gente já era meio hippie, eu, Lula Cortês, a turma do Ave Sangria, o filme nos fez ver que todos nós estávamos na mesma onda. Para mim Woodstock foi muito inspirador”.
O cartunista e escritor Lailson de Holanda recorda que tomou conhecimento do festival pelo semanário O Pasquim, na coluna Underground, assinada por Luís Carlos Maciel: “Foi a primeira vez que ouvi falar em Jimi Hendrix, Carlos Santana e Janis Joplin. Como naquela época eu ainda era bem garoto – 16 anos – não conhecia tanta gente que se interessasse pelo assunto. Tocava ainda em banda de adolescentes com Paulo Rafael (a lendária The Jopens!) e, para o público em geral, Beatles e Rolling Stones já eram vanguarda demais! Mas aí comprei o Have you been experienced, de Hendrix, e a vizinhança pensou que eu tinha ficado doido, diziam que era um barulho ensurdecedor. E olha que minha radiola Philips nem era estéreo!”. Mas até aí era só a descoberta de novas possibilidades sonoras. Ver o filme foi, como se dizia então, outro “barato”: “A primeira vez que vi eu estava em Nova Iorque e depois vi aqui, no Cine Veneza. Aí já estávamos em 1972, maluco surgia mais que cogumelo – literalmente – depois da chuva. O cinema virou uma comunidade hippie, tinha gente sentada em todo canto, no gargarejo da tela, na alcatifa que fica da tela para a primeira fila. Acho que todo mundo saiu do cinema com a sensação de que ser livre era possível, mesmo estando sob uma ditadura”.
WOODSTOCK DO AGRESTE
Influenciado por Woodstock, Lailson participou da produção da Feira Experimental de Música de Nova Jerusalém que, segundo ele, foi o nosso Woodstock local. “O logotipo que criei (um braço de violão com um punho fechado em cima) era a minha idéia variante do festival original. Ao invés de “Paz e amor”, uma proposta mais de resistência. Roberto Peixe ( ex-secretário de cultura da prefeitura) foi quem fez a versão final, pois meu desenho original era uma ilustração, muito cheia de detalhes. Ele sintetizou muito bem e ficou ótimo”. O festival de Nova Jerusalém teve a participação das principais bandas e cantores da cidade, entre outros, Lula Cortês, o Nuvem 33, o Tamarineira Village (mais tarde Ave Sangria), sedimentando uma cena de música alternativa no Recife e Olinda.
Marco Polo, compositor e principal vocalista da Ave Sangria, na época de Woodstock, já caíra na estrada, vendia artesanato na famosa feira hippie da praça General Osório, em Ipanema, no Rio. Ele assistiu ao filme com outros hippies: “Eu fiquei particularmente fascinado com a performance chocante de Joe Cocker, cantando A little help from my friends, de Lennon e McCartney, num arranjo arrepiante de Jimmy Page (futuro Led Zeppelin) à frente das guitarras. Saímos do cinema em estado de graça e fomos direto para um bar, beber, conversar, comentar, comemorar. Era o auge do paz e amor, com sexo livre (leia-se todo mundo transando com todo mundo), uso generalizado de drogas leves (leia-se maconha) e muita música (leia-se rock e derivados). Eu já compunha na época, e o filme foi mais um incentivo para continuar compondo, cantando e sonhando em formar uma banda, o que terminou acontecendo quando voltei para o Recife e formei com o pessoal de Casa Amarela a Tamarineira Village, depois Ave Sangria.
Hoje trabalhando em publicidade em Fortaleza, o músico Tiago Araripe, da Nuvem 33, conta como foi afetado pelo documentário sobre o festival: “De um lado existia aquele sonho coletivo da geração hippie, de que a melhor resposta ao mundo poderia ser simplesmente paz e amor. De outro, o anseio juvenil de estar, de alguma forma, participando do movimento. Eu já dava os primeiros passos na música, mas quando assisti ao documentário sobre o Woodstock no Cine São Luís do Recife foi um impacto. A decisão de mergulhar mesmo na música havia sido tomada a partir de encenação da peça Hair no Teatro do Parque. Um dos atores, que como outros que vieram a Pernambuco havia participado da montagem brasileira original, era José Luiz Penna. Penna, hoje presidente nacional do Partido Verde, me convidou a ir a São Paulo onde depois viríamos a fundar, com Paulo Costa, Xico Carlos, Beto Carrera e Bill Soares, o grupo musical Papa Poluição.
Quando assistiu a Woodstock, Araripe já participava do Nuvem 33, um grupo formado por muitos integrantes, com influências de Jimi Hendrix e, principalmente, Frank Zappa. “Quando o filme chegou à cidade nos deixou animadíssimos. Fernando ‘Carneirinho’, o guitarrista do grupo, praticamente internou-se no cine São Luís e assistia uma sessão seguida da outra. Ficava horas no cinema. Eu vi o filme umas três vezes. E ouvia muito o álbum do festival. O filme supriu uma lacuna importante, numa época em que não existia internet e quando quase não víamos televisão. Havia uma visão muito romântica e idealizada das drogas, por exemplo. Muita gente embarcou nessa. Não existia o conhecimento de causa que há hoje quanto a esse aspecto. Conheço muita gente talentosa que pagou um preço muito alto por isso. Alguns, com a própria vida. Por outro lado, Woodstock funcionou como um estimulante painel da música pop, que nos marcou muito. Em mim, por exemplo, acentuou o gosto pela diversidade musical. No País, a repercussão daqueles três dias de paz e amor sacudiu o mercado brasileiro e funcionou como motivação para os festivais de música que viriam em seguida, dando projeção tanto à MPB quanto ao rock e impulsionando a carreira de tantos artistas”, diz Araripe.