quarta-feira, 23 de abril de 2008

Tangos e morcegos

Quando adolescente no Crato, morei em um sobrado antigo localizado na Praça da Sé. Era algo estranho: no térreo, de cômodos praticamente lacrados, o que havia eram móveis e quinquilharias centenárias da família do meu pai.

O lugar, escuro e assustador, vivia fechado. A ele chamávamos de Subterrâneo. Isso talvez por habitarmos o andar de cima, numa ala de quartos com assoalho de madeira, tendo pouco abaixo dos nossos pés aquele ambiente sombrio.

Havia muitos morcegos transitando ali, e algumas vezes eu e meu irmão Flamínio nos divertíamos a caçá-los pela casa. Com uma daquelas espingardas de carregar pela boca - socadeira, como dizem no sertão - dispensávamos o chumbo que poderia quebrar as telhas: bastava a pólvora, a bucha e o barulho da explosão para os morcegos, cegos que se guiam pela audição, caírem fulminados.

Anos depois, tive a oportunidade de ter o próprio Drácula nas mãos. Não, ele não veio de algum castelo fantasmagórico da Transilvânia. Saiu mesmo foi de um moderno apartamento no bairro paulistano das Perdizes. Longe de ser o aterrorizante personagem de Bram Stoker, era na verdade um vampiro bem-humorado, saído da imaginação criativa do poeta de Décio Pignatari.

Chegou até a mim por meio de Tom Zé, como letra de música, em meio a outros poemas de Décio. Dois deles falavam de vampiro e pareciam mais longos do que normalmente são as letras de uma canção. Depois de algumas horas ao violão, consegui transformá-los em tangos algo futuristas. Ambos foram registrados em disco. Teu coração bate, o meu apanha virou o lado B do compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe. E com Drácula participei do Festival Abertura, da Globo.

O Festival aconteceu em 1975, no Teatro Municipal de São Paulo. Representava a tentativa da Globo de reviver os áureos tempos dos festivais de música popular que tanto animaram a cena cultural do país na década anterior. E projetou nomes importantes como Djavan, Alceu Valença, Walter Franco, Hermeto Pascoal, Ednardo, Luís Melodia, Jards Macalé, Jorge Mautner e muitos outros (clique nos links para ver letras ou assistir clipes de algumas das músicas do Festival).

Os futuros parceiros de Papa Poluição - José Luiz Penna e Paulinho Costa - também estavam entre os participantes defendendo Muzenza, composição deles que integraria depois o repertório do grupo, assim como a própria Drácula.

Uma das apresentadoras do Festival era ninguém mais ninguém menos que a Marília Gabriela (foto abaixo). Nos shows dos intervalos estavam lá artistas como Tim Maia e Caetano Veloso. Em suma, havia na receita todos os ingredientes para fazer do evento um grande espetáculo.

Tivemos bom ensaio geral na véspera, quando Drácula foi considerada, por alguns jornalistas presentes, como proposta inovadora. Saí do Teatro Municipal animado, cheio de perspectivas quanto à apresentação da noite seguinte e os seus possíveis desdobramentos.

Mas o imprevisto aconteceu. Lá fora, a garoa e o frio de uma virada de clima habitual em São Paulo passou a destoar das roupas leves que eu usava.

Resumindo: acordei afônico no dia do Festival.

Ao que parece, meu drama pessoal sensibilizou algumas pessoas nos bastidores do Teatro - principalmente aqueles que me viram cantar no ensaio anterior. Uma jurada, notória professora de canto, pediu que me transmitissem exercícios vocais para melhorar a garganta (se não me engano, foi a própria Marília Gabriela a porta-voz da receita). Do seu camarim, Caetano orientou que me ensinassem uma posição de Ioga chamada de Posição do Leão, indicada para casos como o meu. Atordoado, eu a tudo aceitava querendo ficar bom. Cheguei a cogitar a substituição por outro intérprete: o próprio Paulinho Costa. A direção da Globo não aceitou: meu videoclipe já estava gravado, ambientado no cemitério da Avenida Dr. Arnaldo, e havia alguma simpatia pela minha imagem magra, longos cabelos, vestido com capa negra de vampiro meio hippie.

Assim, com a coragem de mamar em onça que desenvolvi nos momentos difíceis de enfrentamento do público, adentrei o palco do Teatro Municipal. Procurei compensar a falta de voz com gestos dramáticos. Houve quem ouvisse na minha rouquidão uma referência aos guinchos de vampiro, que os violinos do arranjo de Mauro Giorgetti sugeriam.

No dia seguinte, alguns críticos foram benevolentes. Wladimir Soares, do Jornal da Tarde, escreveu que Drácula "foi a única música a representar uma proposta concreta de inovação e criatividade". Continuando, acrescentou: "Na hora da apresentação, Thiago (sic) Araripe perdeu a voz e ganhou apenas 66 pontos; era um tango que fugia do tradicional portenho e do jazzístico de Piazzola, com uma linha própria".

José Miguel Wisnik, que anos depois se revelaria um talentoso compositor, registou no jornal Última Hora o que chamou de perda lamentável "porque envolve o próprio andamento do concurso":

Thiago Araripe, que apresentou a música Drácula, é um cantor muito bom, com uma afinação muito natural e segura, além de ser um ótimo compositor, conforme pôde-se ver no decorrer dos ensaios. Acontece que ele acordou sem voz no dia da apresentação, em conseqüência dos rigores do clima paulistano, e sua interpretação perdeu toda a naturalidade. Repare bem quando puder: Drácula é uma das melhores composições do festival.

A seguir, você vai saber como - mesmo desclassificado no Abertura - fui convidado para cantar Drácula no Fantástico. E não vale antecipar, dizendo que é o show da vida...

A propósito, a foto que ilustra esta postagem é de um show realizado no Colégio Rio Branco logo após o Festival Abertura. Ali está, provavelmente, a mesma capa que utilizei no evento da Globo. Ali está, com certeza, o embrião que deu origem ao grupo Papa Poluição - e começou quando formamos uma banda para acompanhar Tom Zé alguns meses antes - inclusive no mesmo colégio paulistano.

Além de Xico Carlos na bateria e Fausto Aguiar na guitarra, contei com a participação de José Luís Penna e Paulinho Costa. Não lembro quem estava no baixo: a pessoa ficou encoberta por mim na fotografia. Mas recordo que bem em frente, na platéia, estavam Décio Pignatari e os irmãos Campos - Augusto e Haroldo. E que estreamos nessa noite outra parceria minha e do Décio: O hipopopótamo, rumba dançante de letra estranhíssima.

Tiago Araripe

6 comentários:

guida disse...

Oi Tiago,
bom dia!
Engraçado, mas há muitos anos atrás, ouvia seu disco, Cabelos de Sansão, em um sobrado na Vl Mariana.
E ontem, sonhei com uma das músicas (Estrela do Mar).
Falei hj, por e-mail, com minha irmã, pois eu não lembravaa seu nome (desculpe).
Ela, no entanto, é sua amiga (ou foi...rs)
Goretti seu nome.
Enfim, estou muito feliz em saber que poderei, em breve, voltar a te ouvir.
Bjs e sucesso!

Tiago Araripe disse...

interessante sincronicidade, guida. "estrela-do-mar", parceria com cid campos, é uma das canções de que mais gosto no disco.
um abraço para sua irmã.
e para você também.

Anônimo disse...

ola Tiago:
lembro do maestro Mauro Giorgetti, aos berros, desesperado ao telefone, me intimando pra ir até o Municipal. ainda bem que nao precisou pois voce deu conta muito bem apesar da rouquidao.
puxa vida, voce tem otimas fotos do Papa!
ah, acho que "Elo" ta ficando legal. abraços
Paulo Costa

Unknown disse...

pois é, paulo. a globo colocou à disposição maestros como júlio medaglia e outros grandes nomes. mas insisti no então desconhecido mauro giorgetti, que fez aquele arranjo genial para "drácula". incluindo até clarone!

Dalvinha disse...

Se preocupa não paulo costa...eu salvo todas as fotos.Viu Tiago?posso? agora já foi.Tá tudo no arquivo Papa Poluição/Paulo Costa.Tô aqui pra isso.Tiago, vc deixa eu pegar as fotos não é?Vão servir pra vc também quando lançar Cabelos de sansão.Pode deixar.Beijos Paulo, Beijos Tiago.
Dalvinha Costa

Tiago Araripe disse...

pode pegar as fotos sim, dalvinha. elas pertencem a todos os papas e agregados. abs.