segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Tom Zé, por Tiago Araripe


Em dezembro de 2003, Tom Zé veio a Fortaleza apresentar o show Imprensa Cantada e lançar o livro Tropicalista Lenta Luta. Na ocasião, o jornalista Luciano Almeida Filho me pediu para escrever um texto sobre o período em que trabalhei com o compositor e músico baiano. Tirei do fundo do baú a foto ao lado, que ilustra o artigo (de um ensaio que fizemos no apartamento de Tom Zé em Perdizes).
O depoimento me proporcionou um reencontro musical com Tom Zé no palco do anfiteatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. A convite dele, juntei-me à banda e ao show para dividir os vocais da antológica Jimi Renda-se.


RECORDAÇÕES DO FUTURO


Tiago Araripe
Especial para O POVO


"Quando saí de Recife para tentar a sorte como cantor e compositor em São Paulo, deixando pela metade o curso de Arquitetura e um emprego de copy-desk no Diário de Pernambuco, só tinha um objetivo cem por cento definido: estudar na escola de música de Tom Zé. A fixação tinha seus motivos. Tom Zé era, como 30 anos depois continua sendo para muitos, uma referência de inventividade musical. Suas entrevistas que acompanhei pela televisão me indicavam um criativo invulgar, sempre capaz de lançar um olhar novo sobre os mais diversos assuntos da vida e da cultura do país.


Cheguei a São Paulo no início de 1973, trazendo na bagagem algumas composições tão estranhas quanto imaturas, feitas no eixo Crato-Recife por onde eu me movimentava. Não por acaso, o primeiro show a que assisti na grande metrópole foi o de Tom Zé e Grupo Capote, no auditório do Masp. Depois um vizinho pianista me forneceu o telefone do cantor e marcamos o primeiro encontro. De antemão soube que a escola de música já não existia. Mas fui em frente. Na longa conversa que tivemos no estúdio do maestro tropicalista Rogério Duprat, no bairro do Bixiga, entremeada pela apresentação ao violão de meu precário repertório, Tom Zé se mostrou um ouvinte atento e respeitoso. O contato, que durou toda uma tarde, teve desdobramento inesperado: trabalhamos juntos durante um ano, fazendo apresentações nas quais eu tinha espaço para mostrar algumas de minhas músicas.


A princípio, reunimos um time de músicos amadores, universitários de uma forma ou de outra atraídos pelo trabalho do baiano de Irará. (Alguns deles se profissionalizaram e chegaram a dar boas contribuições ao que se configuraria mais tarde como a Vanguarda Paulistana.) Ensaiávamos no apartamento de Tom Zé nas Perdizes, provavelmente no mesmo edifício onde mora até hoje e do qual é jardineiro oficial. Na mesma vizinhança habitavam os articuladores do movimento concretista: Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Cheguei a participar de alguns encontros de Tom Zé com esses poetas de campos e espaços. Muitos deles no bar Cristal, regados a chopp e Steinhager. Não raro surgiam intersecções musicais interessantes, como a audição da obra do músico austríaco Anton Webern, promovida e comentada por Augusto de Campos, no apartamento deste, com a presença de Tom Zé e do poeta Régis Bonvicino. Ou as cinco letras que Décio pediu a Tom Zé para musicar e este me repassou: um desafio, pois eram extensas e sugeriam tudo menos versos de canção popular. Mesmo assim, a partir delas consegui fazer duas composições: Teu coração bate, o meu apanha, lado B do compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe, lançado pela Continental em 1974, e Drácula, que interpretei no Festival Abertura da Globo no ano seguinte. Ambas são tangos, gênero no qual até então eu não me aventurara, definidos pela crítica especializada da época como uma vertente nova, não enquadrada nem no tango tradicional nem no tango jazzístico de Piazzola. Aprovado pelo novo parceiro, ganhei depois uma letra específica (e curiosíssima) das mãos do próprio Décio, transformada numa espécie de rumba: Hipopopótamo (sic).


Voltando ao fio da meada. Nos ensaios com os universitários, trabalhando a partir da sonoridade acústica de violões, era interessante observar a capacidade de Tom Zé de extrair o melhor dos músicos incipientes que éramos. Valia-se dos seus conhecimentos de música erudita (chegou a estudar cello e ter aulas com Smetak, quando morava em Salvador) e sua intuição de artista inquieto, sempre em busca do inusitado, para nos ensinar. Lembro de um arranjo que ele criou para ser executado por mim numa harmônica de boca, mostrando-me como tocar sem me atrapalhar com o manejo da clave. Assim a gaita incorporou-se aos shows, que fazíamos em diversos espaços da capital e do interior paulistano. E olha que nunca fui tocador de gaita.


Em determinada altura do campeonato, sugeri a ele que deveríamos modernizar o show, dando-lhe uma característica pop. Algo que fizesse jus ao disco Todos os olhos (sim, aquele da foto polêmica), recém-lançado. Ele aceitou de pronto, e convidei alguns amigos, nordestinos e músicos, constituindo assim o que viria a ser o embrião do grupo Papa Poluição, que integrei entre 1975 e 1980.


A derradeira apresentação que fizemos juntos foi num evento sobre cultura baiana no Anhembi, do qual participou também Walter Smetak. No seu show, Tom Zé entrava todo paramentado de artista pop, com uma máscara aplicada sobre o rosto que o deixava transfigurado. Aos poucos ele ia tirando o disfarce, arrancando nariz, orelhas etc. Se queria impacto, conseguiu.


O registro do trabalho que fizemos juntos foi o compacto gravado no mesmo estúdio, de apenas dois canais, onde nos conhecemos: de um lado Conto de fraldas, de Tom Zé, e do outro Teu coração bate, o meu apanha. Queríamos uma sonoridade diferente para o disco, e convidamos um músico na época bem cotado nos estúdios, mas completamente desconhecido do grande público: Guilherme Arantes. Foi quem fez os arranjos, pilotou os sintetizadores e participou do coro.

Tom Zé tinha uma maneira peculiar de viver a cidade de São Paulo. Acompanhá-lo dirigindo no trânsito caótico era muito interessante. Ele sabia de todos os fluxos e contrafluxos, de todos os meandros do tráfego, como um pescador conhece as oscilações das marés. O que não quer dizer que sua convivência com a cidade fosse tranqüila. Não o era em absoluto. Que o digam algumas de suas músicas, como Botaram tanto lixo, botaram tanta fumaça.


Fazia anos que não o via e nos encontramos na pré-estréia do filme The Doors, à qual ele foi por insistência da esposa Neusa. Tinha voltado há pouco de Nova York onde tivera o primeiro contato pessoal com David Byrne. Assistimos ao filme juntos e perguntei-lhe como estava a cena musical novaiorquina. Ingenuamente, imaginava que me contaria novidades quentíssimas. No entanto, ele me respondeu que não sabia: ficara o tempo todo dentro do hotel.


Esse é o Tom Zé que conheci. Um ser híbrido, meio Irará meio futurismo universal. Durante o longo período em que ficamos sem nos ver, tive um sonho premonitório que contei a Neusa numa fila de cinema. Nele, Tom Zé obtinha finalmente amplo reconhecimento. Isso foi antes de o mundo lhe abrir as portas, a partir do convite de David Byrne. Que bom que se tornou real."
(Publicado no jornal O Povo, em 5 de dezembro de 2003)

Um comentário:

Dalvinha disse...

Tom Zé...pessoa incrível, engraçada, culta, inteligente, cheia de medos e críticas...lembro de uma frase que ele dizia(não sei bem se é fato) "Todos os caminhos nos levam aá Rua Bahia"...ele morava em Perdizes(mora).O Tom Zé que viu Marcelo(sobrinho) falar pela primeira vez BATE,BATE,BATEeee, e ele lembra disso..pois tem uma memória previlegiada.Grande Tom Zé.