
A boa nova vem de Porto Alegre, uma das capitais brasileiras (juntamente com Fortaleza) que melhor acolheram o vinil Cabelos de Sansão, quando este foi lançado em 1982 pelo selo Lira Paulistana.
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Saravá, Porto Alegre!
teles@jc.com.br
Quem vê o cearense Tiago Araripe hoje, cinquentão, calvo, discreto no vestir, jamais irá imaginar que se trata do mesmo que, nos idos de 72 agitou a cena musical pernambucana no coletivo Nuvem 33, com o Laboratório de Sons Estranhos, o grupo mais performático daquela movimentação udigrudi. Em 1973, araripe foi para São Paulo, onde ajudou a formar a banda Papa Poluição, que marcou época na cidade. Na década de 70, foi parceiro de Tom Zé, de Cid Campos, do pai deste, Augusto de Campos. Tiago esteve envolvido na maioria das elucubrações acontecidas na paulicéia desvairada, que acabaram desaguando no começo dos 80, no que se convnecionou chamar de Vanguarda Paulista, e no primeiro selo independente importante do País, o Lira Paulistana. Seu disco Cabelos de Sansão, que relança hoje, às 19h, na Passa Disco, foi o segundo título do Lira.
O relançamento acontece graças a Zeca Baleiro, admirador do trabalho de Tiago Araripe, e que o abrigou em seu selo, o Saravá Discos. Um relançamento que deve levá-lo de volta ao estúdio. “É um resgate importante em dois níveis: primeiro, por dar oportunidade às novas gerações de ter acesso a iniciativas raras como a do Lira Paulistana no início dos anos 80, e da Saravá Discos agora. Nos dois casos, são espaços abertos para trabalhos à margem das grandes gravadoras, reveladores de outras formas de vida – no sentido de valorização da diversidade cultural. Na época do LP, era difícil classificar qual era exatamente o tipo de música que eu fazia – o mercado formal não estava preparado para vender essa indefinição”, comenta Araripe.
Passados 35 anos, ele recomeça a carreira de músico, que trocou pela publicidade. “É significativo estar de volta ao Recife, onde a viagem musical começou. O relançamento de Cabelos de Sansão abre possibilidades para outro disco, capaz de revelar composições armazenadas ao longo do tempo – inclusive parcerias com Zeca Baleiro. O resgate de Zeca é importante também do ponto de vista pessoal, ao me possibilitar uma reconexão com minha própria história de vida. A leitura que ele faz do disco começou a me mostrar novas possibilidades, indicando que o esforço não foi em vão”, diz Tiago.
Como é de praxe nos lançamentos na Passa Disco, a sessão de autógrafo será acompanhada de um pocket show, de Tiago Araripe com o violonista Leonardo César da Silva: “Vou apresentar um punhado de canções de Cabelos de Sansão. Algum elemento surpresa é sempre possível – e será sempre bem-vindo”, diz ele.
» Sessão de autógrafos e pocket show do CD Cabelos de Sansão, de Tiago Araripe, a partir das 19h, na Passa Disco (Estrada do Encanamento, 480, Parnamirim). Outras informações: 3268.0888.
Tiago Araripe
Tiago Araripe e Zeca Baleiro, em cena do lançamento de Cabelos de Sansão em Fortaleza (22/9/2008).
(Foto: Genilson Lima)
Um dia, no final dos anos 80, o cantor e compositor Zeca Baleiro estava espiando as novidades de uma loja de discos no Rio de Janeiro, quando levou um susto: um velho LP, com um cabeludo nu cavalgando um leão na capa, revelava uma sonoridade inovadora, a fusão de ritmos nordestinos com as experimentações do movimento que ficou conhecido como Lira Paulistana, que tinha nomes como Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, Premeditando o Breque e Tetê Espíndola. O tal cabeludo era um cearense chamado Tiago Araripe. Foi amor à primeira vista. Ou melhor: à primeira audição.
De lá para cá, Zeca não descansou enquanto não encontrou Araripe pessoalmente. Aproveitando a oportunidade de um show em Fortaleza, pediu à produção que localizasse Tiago. O homem que apareceu à sua frente era um respeitável senhor de óculos, muito diferente do cabeludo pelado da capa do disco. Mas a voz doce e suave, que um dia Augusto de Campos comparou ao timbre dos trovadores provençais, continuava a mesma. E o talento de compositor também. Zeca Baleiro e Tiago Araripe tornaram-se parceiros, e tempos depois o músico maranhense resolveu relançar Cabelos de Sansão, o disco que tanto o tinha impressionado.
“É um disco importantíssimo, embora pouco conhecido”, declarou Zeca em entrevista ao jornal O Povo, de Fortaleza, e que chega às lojas em 2008 pelo selo Saravá Discos, criado por Baleiro para resgatar trabalhos pouco divulgados e que normalmente não se enquadram nos projetos comerciais das grandes gravadoras.
O relançamento coincide com a série de homenagens aos 50 anos do movimento de poesia concreta e a um de seus expoentes, o poeta e ensaísta Décio Pignatari, um dos parceiros de Tiago, juntamente com os outros líderes do movimento, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. O disco faz desfilar personalidades como Itamar Assunção, Tetê Espíndola, Vânia Bastos, Oswaldinho do Acordeon e o lendário Tony Ozanah (dos Beat Boys, banda que acompanhou Caetano Veloso em Alegria, Alegria no Festival da Record).
Augusto de Campos, aliás, criou uma versão da música Little Wing, de Jimi Hendrix, especialmente para o disco. A capa é do famoso designer Alexandre Wollner e, fiel ao conteúdo experimental e vanguardista do disco, traz uma foto do cosmos captada em telescópio, contribuição do físico Augusto Damineli.
No arranjo das músicas o produtor Wilson Souto Jr., idealizador do Lira Paulistana, fez tudo o que pôde para que as idéias vanguardistas do disco fossem executadas à risca. Foram mais de 300 horas de estúdio, que reúnem formações inusitadas como um quarteto de cordas acompanhado por tabla indiana, instrumentos andinos com sanfona nordestina e toda a parafernália do rock eletrônico. Além de uma “participação” dos Beatles, numa colagem sonora de Strawberry Fields Forever.
UM GAROTO QUE AMAVA OS BEATLES E AS BANDAS CABAÇAIS
Irmãos Aniceto (foto: Pachelly Jamacaru)
Apesar das influências pop que o permeiam, Cabelos de Sansão não esconde a origem nordestina de Tiago. Por trás de todo o experimentalismo com que ousou desafiar o som predominantemente conformista dos anos 80 e de ainda trazer ecos do Tropicalismo, o disco revela um pouco da influência da sonoridade de tradições populares da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, dos reisados e do maneiro-pau.
Para quem sabe da história, em determinados momentos é possível até mesmo visualizar o menino Tiago na cidade cearense do Crato, onde nasceu, de gravador em punho, registrando o som dos pífanos, triângulos e zabumbas desses grupos a pedido do avô folclorista, que muito o influenciou. Ao mesmo tempo, seu outro avô mantinha, em sua fazenda no sertão do Piauí, um baú cheio de tesouros: discos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Marinês. O menino Tiago, tímido e curioso, vivia por ali, bebendo daqueles sons.
Até que um dia, repentinamente, embriagou-se. Um vizinho do Crato, cujo pai tinha uma loja de discos, apareceu com um disco chamado Beatlemania. “Aquilo abriu para mim um novo horizonte de possibilidades musicais” - revela Tiago, que trocou o velho gravador de pilhas do avô por um violão e começou a compor suas próprias canções.
Mais tarde, já como estudante de arquitetura no Recife, deparou-se com o Tropicalismo e com o som de outros vanguardistas como Frank Zappa e Mothers of Invention e Jimi Hendrix. E misturou tudo com os livros de ficção científica de autores como Kurt Vonnegut Jr. e Isaac Asimov. Isso, segundo ele, o levou a ser conhecido na cidade como um autor de “músicas estranhas” e a formar um grupo chamado “Nuvem 33”, no qual figuravam, além dos músicos, também artistas plásticos e atores.
Um grupo tão performático estreou, como não poderia deixar de ser, numa peça de teatro. Armação, encenada no palco do Teatro do Parque do Recife, alternava o teatro com a música exótica do Nuvem 33. Embalado, Tiago Araripe compôs as doze músicas do espetáculo em uma semana. E logo depois voltou ao mesmo teatro com o grupo para o espetáculo de estréia da banda, já batizada. Poderia ser um show de música como outro qualquer, mas Tiago e seus amigos, inquietos, fizeram questão de incluir performances como a de um cartunista desenhando ao vivo “comentários” sobre o que ocorria no espetáculo, sendo as imagens projetadas num telão no fundo do palco.
CRUZANDO A IPIRANGA COM A AVENIDA SÃO JOÃO
Àquela altura a cidade do Recife já era pequena demais para os projetos de Tiago Araripe. Ele ouvira falar de uma certa escola de música dirigida pelo baiano Tom Zé, em São Paulo, e resolveu arribar. Chegou atrasado. Tom Zé já tinha fechado a escola, mas resolveu apostar no jovem cearense de cabelos longos. “Ele tem a capacidade de descobrir o que cada pessoa tem de melhor e de revelar isso”, lembra Tiago que, num dos shows de Tom Zé, surpreendia a si mesmo fazendo um solo de gaita mesmo sem muita intimidade com o instrumento.
Por intermédio de Tom Zé, Tiago conheceu Pignatari e os irmãos Campos. E foi apresentado à efervescente vanguarda paulistana dos anos 70 e 80. Com Pignatari, compôs Teu Coração Bate, o Meu Apanha (gravada no compacto simples Tom Zé e Tiago Araripe, de 1974), e Drácula, poema convertido num tango futurista pelas mãos do músico cearense e apresentado no Festival Abertura da Rede Globo, de 75. Drácula também virou um videoclipe gravado nos porões do Teatro Municipal de São Paulo e estrelado por Tiago em rede nacional no Fantástico. De Augusto de Campos, ganhou “de presente” a versão de Little Wing que enfeita Cabelos de Sansão.
No filme Sargento Getúlio, vencedor do Festival de Gramado em 1983, a voz de Tiago Araripe flutua sobre um desempenho inesquecível de Lima Duarte, na trilha sonora criada pelo grupo Papa Poluição, fundado por Tiago e outros músicos nordestinos em 1975. Aliás, o “Papa” ainda tem seus fãs fidelíssimos, que mantêm uma comunidade no Orkut. O grupo, que misturava rock com ritmos nordestinos, gravou pequenos discos, fez shows nos mais diversos espaços de São Paulo e excursionou pelo Nordeste.
O CD Cabelos de Sansão, o mais novo relançamento Saravá Discos, é o resultado do trabalho de Tiago Araripe pós-Papa Poluição, quando ele iniciou uma fase solo e mais experimental. É um disco histórico porque é o segundo lançado pelo selo Lira Paulistana, logo depois de Beleléu, de Itamar Assunção. Que a música de Tiago Araripe possa enfim ser ouvida pelo público que merece ter.
Uma arte cuja força sai diretamente dos nervos e persegue a exatidão com obsessiva raiva; transplante em que o dente fica no lugar da flor; ranhura no diamante; se quiser coisa que tal, bipe Tiago Araripe.
Tom Zé
O texto acima foi gentilmente escrito para a divulgação do CD Cabelos de Sansão, a pedido da produção da Saravá Discos.