sábado, 16 de fevereiro de 2008

Das ruínas a rexistência, por Carlos Adriano

Entre 1961 e 1962, o poeta e pensador Décio Pignatari (1927) filmou em 16mm alguns projetos sob ânimo ideológico e revolucionário (mas sem experimentação formal). A produção era da Estrela Vermelha Productions, fundada por Décio com seu amigo José Nania. A câmera de corda era operada por Nania e Décio, que também assinava o roteiro e a direção dos filmes.

Entre os projetos rodados, estavam o ambicioso documentário Ruínas para o Futuro (sobre a greve dos vidreiros em 1910 e a utopia operária levantada com a cooperativa anarquista em Osasco), a ficção Ponto de Encontro (uma história de amor passada entre os trilhos dos trens que ligavam Osasco a São Paulo) e o lançamento da pedra fundamental da Matriz de Osasco.

Estes filmes nunca foram finalizados ou exibidos. Permaneceram inacabados, desconhecidos. Das Ruínas a Rexistência (2004-2007; 35mm; 13 minutos) é a montagem poética desta rara constelação de imagens enigmáticas do cinema brasileiro. Com sua habitual sacada de síntese, Décio definiu-o como “um filme cubista-caleidoscópico”.

Assino a realização e a montagem, e divido a produção e o roteiro com Bernardo Vorobow. Eduardo Santos Mendes fez o design e a edição de som. José Luiz Sasso mixou e masterizou. A première mundial deu-se em agosto de 2007 no 60º Festival de Locarno (que, em 2003, exibiu minha obra completa na seção Cineastas do Presente).

No trabalho de reapropriação, as imagens filmadas por Décio foram transformadas por meio de procedimentos ópticos e operações (“efeitos”) digitais: exploração de texturas, re-enquadramento de planos, inversão de movimento, rotação do quadro. É um filme do gênero “experimental”, na vertente found footage, que recicla material de arquivo.

Curiosamente, no que hoje vejo como uma projeção retro-perspectiva, Décio batizou um artigo sobre meu trabalho, publicado à época em que eu havia realizado meus dois primeiros filmes sobre material de arquivo (Remanescências e A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha) justamente com o título “Carlos Adriano: he’s reel !”.

Como todas as imagens provêm de arquivo, era natural e coerente que todos os sons também o fossem. É o que ocorre com dois trechos breves de músicas incidentais de Livio Tragtenberg e Wilson Sukorski (de cujo arquivo veio a gravação da voz de Décio lendo seus poemas), e o som do big bang refeito em laboratório por John G. Cramer.

A única música que propriamente toca no filme (e inteira, nos créditos finais) é Teu Coração Bate, O Meu Apanha, composta por Tiago Araripe sobre a letra de Décio Pignatari. A gravação foi lançada no lado B de um compacto de 1974 (no lado A, Conto de Fraldas de Tom Zé, que faz coro na canção de Décio e Tiago). Sob o mesmo espírito de re-descoberta, que re-instaura uma revelação, eu a escolhi por sua raridade.

E pelo achado maravilhoso. Mas também pela gazua de ouro do que se abre à fruição da experiência. Encerrar um filme de teor sensorial e conceitual sobre a natureza temporal da imagem com uma canção reflexiva e desconcertante (por sua clareza e enigma, sua construção mediada e seu apelo imediato), que faz do jogo amoroso profissão de fé e des/encanto, é um gesto que adiciona outras e plurais camadas de sentido e de ironia.

A canção é extraordinária. A letra deslumbrante joga com achados polissêmicos e paranomasias (o mais evidente é a conjugação do verbo "bater"). A música é proeza de articulação intrincada, em dois tempos (eco em dobro do sentido duplo das palavras). Ritmo da milonga de pós trovador, refinado e popular, do melódico ao atonal. Em pura alquimia do deleite, esgarçada pela dor do amor e retorcida por passos requebrados, a mente sensível dança no construído descompasso de um tango sincopado.

Orgulho-me de ter realizado este filme e ter merecido a confiança de artistas tão raros como Décio Pignatari e Tiago Araripe.

Carlos Adriano

(Imagem: montagem de Carlos Adriano com foto de Décio e sombra duchampiana.)

6 comentários:

Carolina disse...

Assisti a este filme na Mostra Seminários de Cinefilia e fiquei surpreendida com as sutilezas das sequências, dos "efeitos sonoros" sincronizados... montagem de grande sensibilidade.

Tiago Araripe disse...

ainda não tive a oportunidade de vê-lo, carolina. aguardo uma exibição aqui no recife...

Rafael disse...

Boa tarde, Tiago! Impressionante o curta-metragem "Das Ruínas a Rexistência" - não sou de gostar de experimentalismos, mas esse em particular me encantou, porque contém imagens antigas de Osasco/SP, da Rua Antonio Agu e da Avenida João Batista no centro da cidade, do Frigorífico Wilson, da antiga estação de trem, além de cenas da inauguração da Igreja Matriz original, obra da Congregação Passionista (sua demolição, pouco tempo depois, é ferida que não sara nos osasquenses...). Como moro há muitos anos na cidade, é quase impossível não ser mexido pelo curta. Não por menos fui atrás de duas obras de Décio: "O Rosto da Memória" e "Panteros", que estão acima de tudo o mais o que ele fez. Em tempo: está em cartaz uma exposição comemorativa de Décio Pignatari no Centro Cultural São Paulo, que foi onde assisti ao curta-metragem. A entrada é franca e durará até 25/10. Que N. Sra. das Dores o abençoe e proteja! Att., Rafael

Tiago Araripe disse...

Grato pelo comentário e pela dica, Rafael.
Não estivesse tão distante (estou no Recife, agora), iria ver a exposição comemorativa de Décio.
Abraço,
Tiago Araripe

d scan disse...

Olá tiago, rafael e qm me ler aqui!

Para informar que o curta será exibido na sala de cinema do centro cultural na próxima terça feira dia 13/10 !!! a partir das 19h30

duas exibições !

abraços

daniel

Rafael disse...

Agradeço a indicação, Daniel Scandurra, mas só vi sua postagem agora... Corrigindo uma bobagem que escrevi no post acima: ao assistir "Das Ruínas à Rexistência", já havia lido os dois livros mencionados de Pignatari; "Panteros" foi escrito com base na paixão do adolescente autor por uma moça, na cidade de Osasco, e dois dos contos de "O Rosto da Memória" ("Frasca" e "Pháneron") foram criados a partir de episódios vividos por ele aqui. É tocante como a juventude de Décio em Osasco marcou-o fortemente, a ponto de aquele tempo concentrar o que de mais autêntico o autor viveu. Ainda que o curta-metragem capte algo disso, é muito fugaz. Não é uma produção que mereça um replay. Os livros mencionados valem mais a pena. Décio Pignatari não foi um gigante em nada do que fez, porém, "Panteros" e "O Rosto da Memória" restam como dois momentos em que ele, pelo menos, conseguiu ser bom. Um ótimo 2016 a quem passar por aqui!